A enxurrada
varreu a cidade. Atropelou pontes, inundou casas, becos e estradas, arrastou
carros e matou pessoas, deslumbrou-se por todo o lado onde passava. A cada
metro que descia das encostas da cidade ria-se mais ainda, ganhava mais
energia, mais força, mais intensidade. Ninguém conseguia pará-la. Pelo caminho,
parecia agradecer efusivamente todos os contributos para ficar mais imponente,
mais imparável: as pedras, os troncos, os lixos, as casas, as lamas. Há muito
que abandonou o seu percurso original, não perdeu nenhuma das oportunidades
oferecidas: nem aterros, ou pontes estreitas ou até os tubos que apertavam a
sua lascívia destruidora. Encontrou caminhos mais apelativos. “Coisas novas”
que desbravava com sofreguidão. Este passeio mortífero parecia não ter fim. O
mar espreitava ao longe com uma paradoxa serenidade a força daquela água. Ficou assustado, sabia que não estava
preparado para um confronto tão desigual. Esperou e deixou-se invadir.
Há nesta
descrição um desalento de quem não é capaz de descrever o sofrimento, a dor, a
tristeza. De quem ficou distante da realidade da catástrofe. De quem tem a
certeza que os instantes de medo nem sequer foram transcritos como deviam, não
pela falta de vontade mas pela profundidade da tragédia.
É por isto que
só posso estar ao lado de todos nós. Dos meus e dos vossos. Dos nossos. É por
isso que choca-me a provocação gratuita, infeliz e insensata. É por isso que
não entendo os medos obtusos, quase violentos, da procura de explicações. As vitimas,
as que perderam a vida e as que perderam quase tudo, querem explicações. Querem
saber se devem sentir medo de voltar ao local onde choraram desenfreadamente.
Querem saber se podem ficar onde estavam.
As respostas
existem e só podem ser clarificadas, esclarecendo as pessoas, com o apuramento
das responsabilidades. Ignorar
tudo isto é aprofundar a insegurança e promover o pânico. Ignorar tudo isto é
reconstruir o caminho fértil para outra enxurrada, talvez com mais mortos, mais
fúria, mais destruição.
O tempo não pode
ser de oportunismo político. De uma tentativa inadmissível de luta de poder. Da
luta por um poder dentro do poder. Foi isso que assisti atónito: gente
esgueirada na ribeira disputando conferencias de imprensa e debitando insultos
silenciosos, mas ensurdecedores, com outra gente do mesmo poder.
Reconstruir o
que se estragou é muito mais que construir pontes e túneis: É reconstruir
estados de espírito, arranjar consciências e sossegar as pessoas. É preciso
ganhar esta oportunidade para garantir que somos capazes de corrigir os erros,
de modo a devolver a serenidade e a segurança a todos, sem arrogância, sem
insultos, sem provocações gratuitas.
É neste contexto que lamento
profundamente a excitação singular que Jardim sente quando se esperneia e, ao
mesmo tempo, expele altas quantidades de asneiras pela boca.
Jardim parece
ficar deslumbrado quando sintetiza a reacção das pessoas, num natural exercício
de cidadania e intervenção cívica, como abutres. Mas esquece-se que esse
momento tirano esconde a sua verdadeira face: a da avestruz.
É óbvio que me
interessa pouco os sobressaltos da alma de Jardim. É com ele. Mas não ignoro,
nem esconderei, que perante esta liderança, o povo precisa de mais amparo e
outra confiança. Precisa de conforto que ultrapassa o narcisismo grotesco deste
Presidente do PSD. Conforto que garanta que as decisões sobre as opções de
reconstrução não se esgotem nele próprio. Já não se trata apenas de uma atitude
típica de um ditadorzinho saloio mas de um erro de governação com efeitos
profundos na sociedade madeirense. Persistir no modus operandi do passado é
meter a cabeça na areia e abrir caminho para mais catástrofes dentro da
tragédia de 20 de Fevereiro.
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