Hoje estarei no Clube Naval numa festa e numa justa homenagem ao Dr. Alivar Cardoso. Por iso apetece-me recordar o que escrevi aquando a sua morte
O médico
Emil Cioran escreveu que “a morte é a coisa mais segura e firme que a vida inventou até agora”. Mas Emil não conhecia o médico, não conhecia a sua força, não conhecia o prazer que transmitia por estar vivo, nunca falou com ele, jamais sentiu a sua indisfarçável vitalidade e energia. Se assim fosse, Emil teria dúvidas, tal como eu tive, mesmo sem ter passado horas e horas de conversa e convívio. Mas, não era preciso. Com um pensamento apaixonado, verdadeiro e sereno, sobretudo sereno, parecia sentir horror do conflito e da desordem bruta, violenta e insensata. A calma e o bom senso eram marcas do seu comportamento. Uma calma contagiante que todos aproveitávamos em nosso próprio benefício. Era interessado sem ser intrometido, preocupava-se sem a euforia dos histéricos ou a complacência dos desleixados. Compreendia sem limites, ria-se sem crueldade, dava opinião convicta sem obstinação. Nada disto estava escondido, era visível, ao olhar, ao cheiro ao tacto, bastava a sua presença. Todos sentíamos, não discutíamos, apenas apreciávamos, sem perder a oportunidade de desfrutarmos.
Este velejador sabia bem o papel da âncora que o prendia a uma forma singular de viver: descomprometido com a sociedade, preso aos valores que acreditava e seguro nos sentimentos com os seus familiares e amigos, muitos amigos…
Na verdade, os que o conheceram, bem melhor que eu, sabem que era fácil compreendê-lo e, sobretudo, um prazer aceitá-lo. Todos, acredito, reconhecem ter sido um privilégio partilhar alguma coisa com este caçador de coisas simples, de sonhos fáceis, de momentos felizes.
O médico nunca parou, não queria descansar e desatava a juntar amigos aqui e acolá. Tudo podia ser pretexto para uma amizade genuína: a caça, a pesca, a serra, a profissão, os laços familiares, as viagens, o barco, a casa. Desconfio que nunca hesitou viver o prazer da amizade. Tenho a sensação que nunca se arrependeu do que construiu à sua volta: um mar de respeito e admiração que enche de orgulho e satisfação aqueles que com ele viveram diariamente.
O médico era incansável e desconcertante: não passava um dia sem lembrar o quanto apreciava aqueles que o rodeavam. O prazer deste carinho e consideração eram suficientes para que o olhar meigo e elegante do médico reflectisse a admiração dos filhos, da mulher dos amigos, dos outros.
Em boa verdade, a vida está cheia de pessoas comuns mas tem falta de pessoas simples. É por isso que este homem destemido com a vida, era especial: vivia com gosto, gostava de tudo com prazer e partilhava, tudo isto, com alegria e sem complexos. Gostávamos dele por ser grande, responsável, dedicado, seguro e competente. Mas adorávamos, ainda mais, por ser jovem, aventureiro, alegre e bondoso. Podemos nos esforçar mas não é possível escolher o que mais gostava. Da mesma forma que apreciava o mar, o barco, deslumbrava-se com a serra e em particular com o seu Ribeiro Frio. Mas, não era verdadeiramente surpreendente divertir-se com o cinema, com um jantar, com uma festa, com uma conversa à volta de um “gin” e um charuto. Coisa simples, atitudes sábias neste mundo de manias e paranóias.
O médico levou com ele o que mais gostávamos: tudo o que ele era. Por isso, a dimensão da sua morte, a dificuldade de a compreender é o resultado da imensidão e intensidade da sua vida. Não tem explicação e todos esperávamos mais, muito mais. Infelizmente, Emil Cioran tinha razão…
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